interessado em alguma bobagem

domingo, 23 de setembro de 2012

o carpir da esperança - povo-gado e o cabresto da democracia do interior do Brasil-Central

Meu trabalho me proporciona conhecer lugares que nem nossos representantes democráticos imaginam existir.

Todos aqueles olhares, quando torno-me presente, são um desnudamento de seu isolamento. São olhares curiosos, vis, agradáveis, suplicantes, desconfiados, esperançosos.

Mal sabem eles o quanto doem.

Há escondido no Brasil-Central uma infinidade de invisíveis, deslocados e absortos da realidade infame de grandes centros.

Uníssonos, tem o cotidiano na mais enfadonha espécime do padrão-vida.

Nascer.

Crescer.

Correr pelas ruas empoeiradas da infância.

Púbere, descobrir as leis instituídas pela sociedade conservadora.

Adolescer e sonhar com a transgressão.

Fantasiar um mundo fora daquelas cercas.

Curvar e submeter-se ao aceite daquelas cercas altas, inversamente proporcionais aos anos de estudo.

Os transgressores, o gado xucro, e poucos, transpõe aquele emaranhado de conceitos e valores doloridos. Estes, apaziguam o potencial transgressor, contentando-se ao subúrbio, as margens, abastecendo os carros que nunca terão. Contemplando e construindo as torres altas de condomínios para os quais nunca serão convidados.

Aos possíveis homossexuais, após o peso do conservadorismo, deve restar se travestir e frequentar o submundo da Paranaíba ou da região dos motéis na saída para Minas. É certo que alguns preferem um mergulho sem volta no Rio que passa lá de “trabanda”, cortar os pulsos ou deliciar-se com o sabor amargo dos agrotóxicos da fazenda do patrão dos pais.

A grande maioria resta carpir.

Entre uma colheita e uma ordenha, desfrutar dos prazeres carnais que o corpo proporciona. Arriar calças puídas e embebidas em odor de esterco. E, entre remanescentes de mato, nas margens de rio, no meio de um pasto, gozar.

Masturbar-se com desejos mundanos pela prima que mora na fazenda de coronel A ou B. Fantasiar com a filha da vizinha, Dona Joana, Maria ou Ana. Aquela mesma menina, que, quando sem seios, contemplava, companheira, a decadência da poeira depois da passagem de um carro. Aquela mesma menina que humilde esperava demais na submissão da vida o seu príncipe encantado.

Namorar em moldes da década de 70. Ou, fugir, de noite, para os fundos da única escola, desativada. Ali, sentir o prazer, que não imaginava que o descaso  com um espaço público pudesse propiciar. Ali, onde as meninas imaginavam outro fruto de seu sexo, passar uma vida, despejar o resultado do rompimento de seu hímen.

Os avós e pais são aqueles que, tal como a vingança num prato frio, saboreiam o pesadelo dos filhos de casar jovens e ter a mesma existência que tiveram.

E, deste dessabor, tudo se repete.

Casamento, sexo, falta de expectativa, filhos, desamparo, ausência de princípios básicos. Saúde e educação? Cadê? A poeira do conformismo de ruas esburacadas encobriu.

Trabalho no campo. O patrão é o coronel, seus filhos ou seus netos.

Invariavelmente envelhecem. Sem médico, numa espera infindável, numa fila, sem perspectiva, do único posto de saúde do povoado. O postinho - casinha de dois cômodos, que, há muito, parece não frequentada.

Não consigo desvincular daquela casa de saúde a imagem de uma caçamba de entulhos, abarrotada. Provavelmente, ali repousava desde uma reforma da década passada. Naquela calor que beira a insalubridade, num ambiente sem cor, empoeirado, destacava-se uma flor amarela. Grito de uma planta transgressora, que resolveu, infame, desafiar o presente e denunciar a quanto tempo aquele entulho estava ali.

Morrem. E descansam no único espaço daquele distrito onde patrão e povo-gado são iguais. O povo-gado debaixo de um amontoado de terra. O patrão na caixa fria de mármore. Tão fria como toda sua vida.

Este texto é fruto de uma visita a um povoado que visitei em função de um dano ambiental propiciado por uma empresa de mineração que se instalou ali. Interrompendo um ciclo sórdido que se repete a décadas.

O referido distrito tem cerca de 100 habitantes e pertence a um município que possui pouco mais de 2000.

Mas todo aquele gado está marcado.

Ferro quente em lombo empoeirado. Lombo suado, empoeirado e anteriormente marcado por trabalho e sol.

Surgiu como um aglomerado de casas de funcionários da fazenda do patrão. Desde então, o povo-gado, foi o potencial democrático para que o patrão, seu filho e seu neto, sucessivamente, fossem seus representante na câmara municipal.

Curioso que sou, em tempos de ficha limpa, descobri que o candidato de então era o neto do patrão. O futuro do povo-gado era a submissão ao cabresto no debute do neto. Em cuja rede social identifiquei álcool, esbórnia e nenhuma menção àquele rebanho.

Patrão está muito velho. O filho foi vítima de um de um projeto de lei de iniciativa popular, que reuniu cerca de 1,3 milhões de assinaturas. Desde os primórdios, conheceram, aquelas 3 vias, algo próximo a 1,3 milhões de pessoas? Creio que não.

Arrebatadores números. Entre 60 e 80 confissões de submissão, transfiguradas em voto.

O neto do patrão nunca morou ali. Nunca correu descalço por aquelas ruas esburacadas.

“- É Doutor. Estudou em Goiânia.”

Confidencia uma representante do povo-gado, desvinculada de uma realidade distante. Submissa.

Sempre converso muito com os moradores destes recantos do fim do mundo. Mas, naquele dia, tive um conflito interno e silencioso com minha interlocutora do povo-gado.

“- … um absurdo, a filha da Joana do Tião, resolveu candidatar este ano. Um absurdo. Mulher. Tem 2 filhos. Tem que ficar em casa. Um abuso, coitada, sempre disseram que tinha problemas. Absurdo, absurdo…”

A interlocutora era do sexo feminino.

Acredito que nunca vou me esquecer daquelas palavras. É como se o movimento de seus lábios estivessem impressos em meus olhos.

E a Candidata? Sem dúvida ela tinha problemas. Ela não queria ser comum. Ela não queria olhar-se no espelho e enxergar uma vaca. Ela não queria que todo aquele gado estivesse submisso, sujeito a marca de ferro no lombo. Ela queria romper as trancas da porteira daquele curral.

Passei cerca de 5 horas perambulando pelo curral. E meu desejo, era que ante o gado eu pudesse trocar algumas palavras com a Candidata.

Era cada vez mais escuro. Num desespero, por todos os cantos, abaixo de cada resquício de rocha, eu só queria encontrar toda a esperança do mundo, daquele mundo. A Candidata…

Por entre berros e grunhidos, descobri que seu filho estava doente. Ela, mãe prudente,  buscava o que o posto municipal não tinha a lhe oferecer.

A interlocutora me acompanhou por toda a visita a cidade. Conversava com todos. Conhecia todos. Era parte daquela família desesperançada. Humilde, sempre com olhos baixos. Ante cada cumprimento, cada aceno para suas comadres ou compadres, eu via um berro de vaca. A cada cafuné em criança, com ranho no nariz, eu via aquela lambida fraternal de vaca que retira a placenta de bezerro recém nascido.

Nos meus pensamentos mais mundanos, imaginava aquele touro cheirando a esterco e sujo. Recostando e, bruto, entre cabeçadas e berros,  inseminando-a.

Ele, a trabalho do patrão, devia produzir novos descendentes férteis. Eram bezerros-votos. E da sua ordenha das filhas-novilhas, provinham votos. Reflexos da democracia.

Ela e todos eram um amontoado de carne, torresmo.

O patrão só comia picanha e filé.

E eu, cada vez mais diminuto, era carne moída.

O patrão é apenas um ruralista. Vereador. Meu Deus, vereador. (Não sei nem como descrever o meu escárnio.)

Parafraseando Orwell: eu olhava para para todos os lados, confuso, aflito, e só conseguia enxergar gado.

Infelizmente, constato que a Candidata não irá vencer o padrão da democracia do interior do Brasil-Central.

O futuro vereador, o neto, deve estar se embebedando, num fim de domingo, em algum barzinho do Marista ou Bueno.  Ou no Goiânia Shopping, Flamboyant? Afinal na rede social ele curte a Fórum, a Lacoste, a Cavaleira e diversas outras futilidades, que confesso, também me permito.  Entretanto, o meu dinheiro, não é fruto amargo de suor de curral.

E, povo-gado espera a ordenha matinal, que, no tempo dos homens, tem gestação de nove meses e resulta em voto a cada 2 anos.

leite

2 comentários:

Fran e Tonho disse...

Lindo texto, Juber! Exprime o "carpir" de alguns dilemas tão enraizados na poeira dos nossos interiores... abraços! Luiz Antonio

izani disse...

Eu me vi criança lá na minha terrinha.
Tudo igualzinho ao que vc disse.
Lindo, parabéns!