Desconsideremos nossa hipocrisia instituída, retiremos nossas máscaras e sejamos francos.
Não só para um “descrente”, mas para muitos, a Páscoa há muito deixou de significar ressurreição (e eu sei).
Hoje cultivamos coelhos transgênicos com gene de galinha e cacau.
Nunca me esquecerei de minhas teorias infantis de como os coelhos produziam os ovos. E minha mãe escondia-os e fazia rastros com farinha de trigo.
Eu acreditava, confesso.
Em paralelo, me recordo o quanto eu chorei quando descobri que era meu pai quem comprava os presentes para o Papai Noel. Achei que o danado do velhinho era esperto demais. E quando soube que ele era meu pai? Tive febre.
Hoje, menos inocente, com a macula vestida com “viver”, eu tenho vontade de voltar a acreditar nos “coelhos da páscoa”.
Minha inocência fugiu pela porta dos fundos de um modo tão sorrateiro que nem percebi.
A “inocência” esvai pelas frestas dos dedos, dissipa-se. E assim subitamente nos encontramos sujos e jogados na selva.
Hoje eu parei para pensar: qual foi a última vez que ganhei um ovo de páscoa?
Eu não me lembro.
Goiânia, Praça do Cruzeiro, na calçada de uma daquelas farmácias há sempre uma garota. Com pouco mais que 20 anos, ostenta duas crianças de colo como merchandising de seu pedido de esmola.
“… para o leite.” “… para o pão.” “… para o remédio.” Artifícios? Nem sempre. Às vezes a verdade: o crack não deixa de ser um remédio para a criança-mulher esquecer uma realidade bruta de crescer na rua e nunca ter tido um trajeto branco de farinha de trigo que levasse a algum ovo de páscoa.
Um fluxo constante, mareado de poeira, escorre pelas narinas; olhos negros, arregalados e grandes da filha mais velha de no máximo 2 anos. Com seu vestidinho composto por uma camiseta de campanha política, que há muito deixou de ser branca. Aqueles olhos me renderam por diversas vezes como um “trinta e oito” apontado na testa.
Hoje, eu fiz o mesmo trajeto de sempre e fui ao supermercado. Ao retornar, passando pela Praça do Cruzeiro, eu recebi o melhor “ovo de páscoa” do mundo naquele sorriso de quando entreguei o maior “ovo de páscoa do supermercado”.
Eu não preciso de chocolate. E eu acho que este é o real significado da ressureição.
Este foi o melhor caminho de farinha de trigo que segui em minha vida.
Obrigado menininha de olhos negros, arregalados, grandes e por pouco felizes.
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Snow Patrol–Open your eyes
“The anger swells in my guts
And I won't feel these slices and cuts
I want so much to open your eyes
´Cause I need you to look into mine
Tell me that you'll open your eyes”
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Ademais, Feliz Páscoa.
E ressuscitem.