1
Eu sou um fumante inveterado. Mais de 20 doses da vitamina nicotina diárias. Ontem, aguardando meu hexaedro de alcatrão, na fila de uma loja de conveniência de posto, presenciei um diálogo de um casal, que comprava 3 cervejas “Crystal”:
Ela: - Seria melhor ( algo inteligível em função de uma voz trêmula e submissa)…
Ele: - Se você não sabe não fala. Para de ser burra… que porra… (percebendo uma pressão demasiada vindo da mão masculina de dedos rudes)
Ela, negra, de aparência humilde, cabelos alisados e ressecados, pele sofrida, chinelos velhos e puídos, direcionou um olhar discreto, verificando acaso alguém percebera aquele afronta, insulto, assédio de alma… “burra” percebeu meus olhos e direcionou um olhar vulgarmente profundo para a lajota fria, tão muda quanto seus lábios ressecados.
As moedas, que recebia como troco, manifestaram uma vibração tímida. Era compaixão?
Bruto e tosco, homem, abriu uma lata de cerveja, ajeitou as outras numa sacolinha de plástico, arrastou seu objeto sexual. Mal sabia ele, quão pesado era o rancor acumulado naquele “ser-buraco”.
Saindo da loja de conveniência, recebi um olhar pungente da submissa senhora. Era um grito, mudo, de socorro, de vergonha.
Ele, com a latinha de cerveja na mão, guiava um carro popular.
Para onde?
Não sei.
2
Almoço com muita frequência num restaurante bem próximo de onde trabalho. Com colegas, amigos, deglutimos o tempo com sabor de amenidades, questões salariais, atualidades, experiências, sutilezas, sorrisos, pecados, confissões, sarcasmo…
Voltamos, lentos, caminhando, digerindo as impressões de mais 4 horas de labuta vindouras.
Hoje, adocicamos a alma apreciando o movimento coletivo de larvas, feias, de borboletas. Apimentadas de medo, temperavam a impressão de poder, deslocando-se juntas.
Eram fome de coragem. Destemidas, juntas, eram saciedade.
3
Volto contemplativo de vida. Volto vicioso pra casa, após laudos, reuniões, trabalho.
Só, naquele trajeto de lote baldio, de chão de terra, irregular pela força do tempo, como em movimento involuntário de passo ante passo, é ali que eu planejo o resto de vida, os resquícios de sol, a poeira da noite.
Sempre, neste caminho, travo embate com a presença de um morador de rua, invisível, barba e cabelos desgrenhados de transpiração, migalhas, sacrifício de acordar, morrer percorrendo as trechos de vida, morto social, abatido por carro do ano transfeito em espelho de banheiro, maculado pela invisibilidade de seu reduto, seu lar, ser assim tão amplo. E toda aquela amplidão de lotes baldios, ruas, avenidas, viadutos, marquises de supermercados são suas grades.
Preso.
Hoje, aquele homem, num lote baldio, feito criança, empinava uma pipa. Os olhos brilhavam mirando um compilado de varetas de bambu e papel de seda vermelho. Sua redenção.
Hostil, sua verdade de dentes puídos, expostos. O embate, era invisível, como fora ele, durante tanto tempo. Ele era o gladiador que apunhalava violentamente meus conceitos. Vil, apunhalava um garoto, loiro, que dentro de um carro de luxo, alvoroçado, chamava a atenção de seu pai para aquele homem feito, criança. Aquele sorriso era a detenção daquela criança. A pipa, por segundos, foi o fluido, quente, que correu pelas veias daquele homem.
Dias atrás, eu vi aquele homem chorar, recostado ao viaduto.
Tímido, ousei ser povo, e fingi para mim, não ver.
Hoje, foi eu, ferido, que fingi não chorar.